sábado, 1 de setembro de 2007

PREFÁCIO

PREFÁCIO


O trabalho inteligente de Eliany Oliveira continua. Em sua dissertação, ela nos revelou as tramas sutis da relação entre alienações, fragilidades, tristezas, frustrações e afetos pairando no vazio que caracterizam a dependência química lícita de mulheres, induzida pela prática médica massificada. Agora, em sua tese, Eliany Oliveira trabalha o tema da violência entre gêneros, com a mulher na posição de recebedora dos maus tratos, na estranha dialética que sempre acompanha a relação entre algozes e vítimas: quem? como? porque? o que parece mas não é? o que não é mas parece?
Declarando um estudo etnográfico, na linha de Clifford Geertz, não seria possível adentrar o labirinto de qualquer tema sem a moldura, a régua e o compasso, o cenário, o campo, que neste caso é o município de Sobral, que inclui semi-árido e serras úmidas, açudes e um grande rio intermitente, vivendo um ciclo de industrialização retardatária ao lado de áreas de desertificação, cidade situada no noroeste do estado do Ceará, unidade geo-política no nordeste da federação brasileira. Daí os ritos de identificação com a cultura local que a pessoa precisa fazer, ao vir de fora e desejar incluir-se, compartilhar os modos e mitos fundadores da realização, da satisfação, das possíveis felicidades. Daí os ritos de identificação que a pesquisadora precisa fazer para ser aceita e compartilhar informações, segredos de outro modo inacessíveis, jeitos específicos de viver a condição humana naquele lugar, com aquela história, aqueles elementos próprios de ordenamento de explicações e de visões do mundo.
Sou um sobralense nostálgico de uma Sobral onde nunca vivi, experimentando uma saudade sem perda, ideológica, cognitiva, que me faz montar uma pequena biblioteca de livros e memórias dispersas. Então me deliciei com o choque gustativo do guaraná Del Rio e a imersão no centro nervoso de boatos do Beco do Cotovelo, na busca-processo de compreender onde se está, descobrir os lugares privilegiados de pesquisa, encontrar seus sujeitos. Mas Eliany Oliveira, que vive em Sobral há mais tempo do que jamais vivi, ainda fala de Sobral - o sobreiral dos “sobros sobreiros” onde “sobra sol” da ode de Caetano Ximenes Aragão, ou a “princesa augusta do Nordeste que sorri sob amplo céu de safira” do soneto de Paula Ney – como estrangeira, com datas históricas e características socioeconômicas, sem aprofundar o veio da sobralidade. Mas, em outro momento, ela o fará, e agora o que ela colhe é suficiente para o objetivo desta tese tornada livro.
A descoberta da Delegacia de Defesa da Mulher-DDM e das Agentes Comunitárias de Saúde-ACS, como lugares sociais e fontes de informações e de contatos, é narrada com sabor de diário e de literatura. Quem lê, sente o espaço, a cidade, o prédio, o afã dos policiais, sobretudo sente a sensibilidade de Francisquinha, uma ACS que faz o que sabe e sabe o que faz, acompanhando-a pelos caminhos de sol e de lama, pela vivência orgânica da perversa mistura de pobreza e humilhações. Obedientes aos instintos, homens e mulheres se juntam para procriar; obedientes aos cânones sociais, permanecem juntos inventando uma família nuclear idealizada em outras condições históricas; imersos acriticamente no patriarcalismo sem propriedade e no machismo primitivo, o homem sabe que, na mais precária das condições, no mais fundo do poço, sempre haverá um copo de cachaça para obnubilar a realidade e um corpo de mulher para espancar.
Estabelecida a moldura doadora de significados e encontrados os seus lugares e os seus sujeitos, a pesquisadora passa a visitar seu tema. Com propriedade e exaustão, ela organiza e critica a vasta literatura produzida, sobretudo na última década, sobre violência, violência de gênero, violência sexual, violência não sexual, violência doméstica, violência no trabalho, violência nos espaços sociais informais, violência e saúde. Pessoalmente tenho trabalhado com violência letal, suicídio e homicídio, como indicador epidemiológico de saúde mental e, apoiando a dissertação e a tese de Ernani Vieira de Vasconcelos Filho, apreendi os dramas teóricos e práticos, conceituais, interpretativos e operacionais que a temática coloca diante do pesquisador.
No campo sociológico, como Maria Cecília Minayo demonstra, agressividade e violência são identificadas em bloco, limites conceituais imprecisos, como um problema genérico. Mas no campo da Psicanálise, como vemos em Erich Fromm, agressividade e violência se distinguem. A agressividade pode ser definida como potência inerente aos seres humanos, expressa em sua capacidade de, ativamente, reagir sobre a natureza, transformando-a, e então, em vez de sermos objetos das possibilidades adaptativas evolucionárias, nós seres humanos criamos necessidades especiais e adaptamos a natureza a estas necessidades. A violência pode ser definida como alteração da agressividade, resultado de processos sociais baseados na aplicação de força para o exercício de poder de indivíduos contra outros e contra si mesmos, de grupos contra outros e contra si mesmos, com intenção de provocar dano, físico ou mental, aliando submissão e humilhação. A violência é o resultado da agressividade humana, manifesta nas relações interpessoais, quando há emprego de energia com o propósito de causar dano, com a força sendo imposta a serviço de determinados interesses, exercida em condições de assimetria, com direção específica, resultando em negação de direitos dos seus alvos.
Classicamente, os estudos sobre a violência, a partir da década de 1940, apontam para pobreza, heterogeneidade racial, assimetria de gênero, mobilidade social e sentimento de impunidade compondo cadeia de condições básicas para altas taxas de delinqüência. A exploração, a opressão, a alienação e as iniqüidades sociais, percebidas como legítimas ou não, geram conflitos que podem assumir forma violenta.
A questão da violência relacionada com a saúde das populações, a partir da década de 1990, passa a ser prioridade nas agendas das organizações internacionais do setor saúde. Em 1993, a Organização Mundial da Saúde-OMS estabeleceu oficialmente, para a comemoração do Dia Mundial da Saúde, o tema “Violência - Prevenção de Acidentes e de Traumatismos”. Ainda no ano de 1993, a Organização Panamericana de Saúde - OPAS, na XXXVII Reunião do Conselho Diretor, decidiu instar aos governos membros para estabelecerem políticas e planos nacionais de prevenção e controle da violência. Em 1994, a OPAS apresentou um plano de ação regional no qual foi dada prioridade ao combate à violência em sua operacionalização.
No Brasil, no campo da Saúde Pública, esforços têm sido feitos para atender os efeitos da violência, seja na reparação dos traumas, na atenção às emergências, na reabilitação e no amparo médico legal. Mas não há política de saúde que vislumbre a perspectiva de localizar sua atenção na promoção de um estilo pacífico de vida e na prevenção dos atos de violência.
Se Saúde Pública consiste em situação de bem-estar coletivo, com sentimento de desenvolvimento social e poder de usufruto da vida, por parte dos indivíduos e dos grupos, a emergente violência realiza contravalor, indicador negativo, força contrária, que precisa ser neutralizada. E Eliany Oliveira atualiza o debate e nos faz entender as situações nas quais o processo histórico de construção da violência constitui o homem como algoz e a mulher como vítima, ambos vivendo as mesmas condições sociais perversas, mas em assimetria de gênero derivada do patriarcalismo e do machismo.
A opção por conceber e explorar figuras metodológicas é muita rica, e a pesquisadora se sai muito bem neste mister. Na figura metodológica “corpos doridos, marcas e seqüelas da violência física”, é possível identificar as conseqüências físicas e emocionais, reais, dos maus tratos, do sentimento de medo, humilhação e impotência marcando as mulheres vítimas de violência, destacando-se, de modo evidente, o choque das fantasias e dos desejos de morrer, se deixar matar, se matar e matar. Na figura metodológica “o corpo sofre, o nervo fala”, tipificam-se as reações de poliqueixa - as psicossomáticas, os pitis, os farnesins – e os agressores, homens maus, homens que foram ficando maus, homens bons que ficam maus por influência dos porres de cachaça, vítimas de si mesmos.
Como conclui a pesquisadora, “a cultura de gênero fomenta a reprodução e a naturalização de comportamentos nos quais o homem se relaciona de forma desigual com as mulheres, utilizando sua força de macho para impor a subordinação da fêmea”. Se países ricos submetem países pobres, raças ditas superiores submetem raças ditas inferiores, ricos submetem pobres, então homens submetem mulheres e nelas podem vingar seus próprios fardos de submissão. Como disse Frantz Fanon, as formas estéticas diz respeito à ordem estabelecida, quer dizer, aquelas que acontecem sem as condições objetivas que permitem a realização não desesperadamente conflituosa do respeito, criam em torno dos explorados uma atmosfera maniqueísta de submissão e de inibição fortemente introjetada nas subjetividades. Cada opressor fala de seu par oprimido concreto de modo a desumanizá-lo, a animalizá-lo, e as mulheres viram cadelas ou vacas espancáveis, piranhas castradoras e cobras peçonhentas a serem destruídas. O oprimido é o inferno do opressor, a quintessência do mal, e ambos se ossificam no meio de palavras mortas. Vidas miseráveis, ausência de perspectivas, sacos vazios apenasmente em pé, cotidianos brutais de coisa: é assim que Eliany Oliveira encontra homens pobres espancando mulheres pobres na periferia de Sobral, numa padronização tão cruel de um certo tipo de globalidade que poderia ser em Fortaleza, em São Paulo, em Nova Orleans, em Cité Soleil, em Calcutá, nos banlieus de Paris.




Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio
Médico psiquiatra (UFC), mestre em Medicina Social (UERJ), doutor em Medicina Preventiva (USP), professor titular em Saúde Pública e diretor do Centro de Ciências da Saúde (UECE)

domingo, 19 de agosto de 2007

A violência contra a mulher foi reconhecida formalmente pelas Nações Unidas, na conferência de Viena ( 1993), como uma violação aos direitos humanos. Mais do que isso, vem sendo encarada por um crescente número de governos e entidades não governamentais como um problema de saúde pública. É esse o foco principal do livro PANACADA DE AMOR DÓI E ADOECE - VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA MULHERES escrito pela enfermeira Eliany Nazaré Oliveira, professora outora da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA.

O livro tem como referência empirica os resultados de uma pesquisa realizada em Sobral - CE. com mulheres vítimas de violência física atendidas na rede básica de saúde e na delegacia especializada de atendimento à mulher. O tema se torna mais complexo quando se percebe que esse tipo violência tem um forte componente afetivo,erótico,sexual como a própria autora define, e por isso vem sempre associado a sentimentos intensos de frustação, angústia, mágoa e vergonha por parte das vítimas.

Para contruir seu texto, a professora Eliany parte de uma sólida fundamentação teórica sobre as relações entre violência de gênero e saúde, especialmente a saúde mental, e dedica todo um cápitulo à discussão dessa prática como elemento cultural. Assim, vai urdindo ponto a ponto a teia que envolve as relações entre a violência, suas causas e seus efeitos deletérios sobre a saúde das mulheres.
Com profunda sensibilidade e apurado senso profissional, Eliany consegue penetrar no sombrio mundo dessas muleheres e obtém um completo diagnóstico de seus sentimentos e desejos. Através da abordagem conhecida como o Discurso do Sujeito Coletiv, a autora cria figuras metodológicas através das quais expõe com absoluta calreza os sentimentos e desejos diagnósticados, assim como traz à luz, em toda a sua pungência, o drama humano protagonizado pelas mulheres vítimas da violência de gênero.